Dostoiévski era ateu?


Orleans Silva

Fiódor Dostoiévski revela em "Os Irmãos Karamazov", um dos livros mais fascinantes da literatura mundial, os mais profundos inquéritos feitos pela humanidade: de onde viemos, quem somos nós, Deus existe?

O próprio Ivan Karamazov angustiava-se no seu pequeno quarto refletindo "Como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único no mundo a viver assim". Em outros livros, como em "Os Demônios", Kirilov discute que a partir do momento em que alguém decide seu próprio destino, transforma-se em Deus, passa realmente a ter livre-arbítrio. Para mostrar a validade de seu pensamento, Kirilov suicida-se, exibindo a chave mestra de seu pensamento.

Entretanto, é provável que a mensagem de Dostoiévski acerca do ateísmo possa ser encontrada no destino que teve o jovem estudante Raskolhnikov em “Crime e Castigo”, que desenvolveu a doutrina do “direito ao crime”, na qual todo aquele que se sente além das convenções tradicionais acerca do bem e do mal, que percebe-se mais forte do que os demais homens, na verdade tem “direito a tudo”, inclusive o direito de eliminar os que considera estorvantes e prejudiciais ao seu objetivo, pois o homem extraordinário deve, obediente às exigências do seu ideal, “ultrapassar certas barreiras tão longe quanto possível”. Raskolhnikov é preso por homicídio, mas encontra na prisão, não apenas a palavra de Deus, mas a redenção e misericórdia. Toda a obra de Dostoiévski encontra-se em uma realidade interior desvelada, nas profundezas supremas do espírito humano: quando o homem se ergue contra toda ordem objetivamente estabelecida, contra suas raízes, e manifesta o seu arbitrário. 

Dostoiévski mostra o cristianismo no sentido mais profundo termo: Deus não devora o homem nem o homem desaparece em Deus, mas, antes, permanece ele mesmo até a consumação dos séculos. A fé que encontramos em Dostoiévski provoca distúrbio e nos leva continuamente a um balanço entre as concepções ideais sobre a vida e como se apresenta. Num mundo que tende perpetuamente a fechar-se em si mesmo, o amor à servidão e à violência podem facilmente ser disfarçado de amor à liberdade (inclusive àquele que ama) quando é a lógica, e não a existência tecida e inteiramente em conexão com a vida, que realiza uma unidade de pensamento. 

As obras de Dostoiévski mostram que a ideia cristã do Reino de Deus e a consciência cristã não têm nenhuma conexão com a idolatria pela santidade na história, assim como, com a santidade revolucionária, democrática, socialista, anarquista, com a idolatria por sistemas filosóficos que acabam por dissolver a personalidade num todo impessoal, ideal ou orgânico. Trata-se antes, de uma colisão entre o amor apaixonado pelo mundo e o amor que vem do Alto, com a piedade por este mundo como mundo de sofrimento. O próprio autor fora perseguido, condenado à morte, absolvido no último instante e condenado a trabalhos forçados na Sibéria. O sofrimento vivenciado certamente recheia seus maravilhosos livros, e a onipresença de argumentos ateus e deístas revela as próprias contradições existentes na sociedade russa do século 19, imersa numa humanidade sangrando de tanto ódio, ganância e destruição.

Entretanto, mais que isto, revela também a associação entre ateísmo, anarquismo e darwinismo predominante não apenas na sociedade russa dezenovecentista, mas mesmo hoje em nossa humanidade tecnocrática e pragmática. Ainda hoje, a comunidade em geral insiste em ser intolerante para com os ateus, que são homens como quaisquer outros, que amam, vivem em harmonia e felicidade. Certamente, se Dostoiévski fosse ateu, muitos o rejeitariam e difamariam suas obras, sem mesmo as terem lido, apenas por sua conduta religiosa.