A sociedade líquida descrita por Bauman


O termo “liquidez”, segundo Bauman, é uma ressignificação do conceito de pós-modernidade e uma forma de responder às questões que a modernidade (significação sólida) nos traz. Segundo as concepções de Bauman, “os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade [...] enquanto os sólidos têm dimensões especiais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la”.

Ao mencionarmos o conceito da liquidez na sociedade, observamos o paralelo imposto entre os sólidos que tentam monopolizar ou estereotipar o conceito de certo e errado e ao mesmo tempo observamos uma sociedade cheia de perspectivas e alusões a novos conceitos e ideias que quebram com tabus, preconceitos enrijecidos e fortalecidos por ideias autoritárias e já ultrapassadas.

A modernidade líquida e seus seguidores caminham de acordo com suas necessidades e assim mantêm-se sempre aberta a novos horizontes ou maneiras mais versáteis de plurissignificar ou encaixar seu sentido, ou vários, ao contexto que nos inserimos.

Sendo assim, nesta sociedade caminham vários significados, não cabendo assim um único olhar às variedades existentes em nosso cotidiano.

A liquidez confronta o passado e desmistifica verdades absolutas, o conceito de tempo/espaço trabalha tão rápido quanto nossos pensamentos. Está enraizada na política que se abre aos problemas presentes e se manifesta em todos os tipos de mídias. Ou seja, a política que antes trabalhava nos jornais ou para um público-alvo, hoje, está em todos os lugares e adaptou-se às variedades linguísticas existentes em nossos cotidianos, por exemplo, a política hoje deve “falar” como o jovem pensa, que diverge da forma como o pai de família pensa, divergindo do idoso e por diante.

Diante disto é visível que a liquidez esbanja várias línguas e incluem várias tribos, cada ser trabalha com sua forma de pensar, e a liquidez no conceito pessoal trabalha de acordo com a necessidade e disponibilidade que lhe é concedida. Assim, como a interpretação e manuseio de valores são firmados, a sociedade líquida pode ser moldada ou até mesmo aperfeiçoada por quem a detém, diferentemente de conceitos sólidos que inibem o processo variacional e importante, dependendo do aspecto único que é utilizado. Pois, por mais que a liquidez “escorra” no que tange ao seu significado, ela deve ter um fundamento inicial, que vá ao encontro da necessidade de quem a recebe, seja por meio de interação virtual, comunicacional ou outros aspectos.

A variedade interacional existente em nosso cotidiano demonstra por si só como a liquidez está presente em todos os setores da sociedade, e como as informações e aperfeiçoamento de novas propostas complementam a necessidade que temos de estar em constante evolução. Conforme Bauman, tal liquidez escorreu tanto que todos os valores ou até mesmo crenças carregam uma parcela líquida e sólida.

Nesse sentido, segundo Bauman, “hoje, os padrões e configurações não são mais ‘dados’, e menos ainda ‘autoevidentes’; eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir.

As influências líquidas tornaram-se tão cotidianas, que a percepção delas está se camuflando, como se os conceitos culturais andassem intrinsecamente lado a lado com a evolução desta nova sociedade. Os conceitos culturais, sociais, familiares mudaram tanto que podemos considerar que o líquido de hoje deva ser o novo sujeito deste futuro incerto. Deste ponto, podemos verificar como os sólidos devem se sentir com relação a isso, como se toda a luta por uma sociedade igual/sólida estivesse se rompendo (pejorativamente) e neste conceito a sociedade estivesse caminhando desenfreadamente para um caos intelectual.

Nada mais hoje em dia é fornecido como um único critério e, dessa forma, cabe ao sujeito receptor se colocar de acordo com o contexto e adaptar suas necessidades com o que lhe é concedido. Neste ponto, é necessário que haja uma versatilidade e visão aberta, para podermos nos adequar corretamente ao que precisamos e queremos de fato.

O sólido mantém sua forma, fixa-se no espaço, diferente do líquido que se esvai, que flui, e não mantém uma forma fixa, perdendo sua estabilidade ao menor movimento, esse não se prende a um espaço. Bauman, para mostrar o desmoronamento do sólido, ou seja, das ideologias modernas, cita eventos que marcaram o século passado como o holocausto e o fracasso do modelo liberal proposto no Ocidente às grandes massas migratórias de pobres em busca de condições de vida melhores. São claras as manifestações de algo errado no cálculo dos economistas ocidentais.

A modernidade oferecia segurança e estabilidade, a vida era sólida, buscava-se um emprego para a vida toda, um relacionamento para a vida toda, pensava-se sempre em algo que fosse durar para sempre. Assim, “nesse mundo fluido comprometer-se com uma única identidade para toda a vida, ou até menos do que a vida toda, mas por um longo tempo é um negócio arriscado. As identidades são para usar e exibir, para armazenar e manter”, defende Bauman.

Não se fala mais em valores eternos, esse conceito não existe mais, as mudanças decorrentes da modernidade não permitem que hoje se pense assim, o desemprego ou mesmo a busca constante por um emprego melhor não permite mais a estabilidade que tanto foi buscada antigamente. Os relacionamentos tornam-se cada dia mais instáveis, diferentes da sociedade moderna em que não se era permitida a troca de parceiros, em que era necessário casar, formar uma família e viver em prol dessa a vida toda.

Hoje se tem um leque de opções, pode-se escolher com quem viver e caso a escolha seja insatisfatória há a opção de trocar, ninguém mais precisa se prender a algo ou alguém que não lhe agrada, pode-se trocar de parceiro, de emprego, de curso entre tantas outras coisas.

No entanto, esse processo de liquefação dos laços sociais não é um desvio de rota na história da civilização ocidental, mas uma proposta contida na própria instauração da sociedade moderna. As coisas atualmente mudam com muita rapidez, a necessidade de aperfeiçoamento não permite que se tenha uma estrutura fixa. Com o surgimento da globalização em um processo de interação e proximidade com as pessoas, tudo corre muito rápido, as novas tecnologias permitem que as informações cheguem com tamanha rapidez a qualquer lugar do mundo, que afeta diretamente a vida das pessoas, em suas decisões diárias.

As pessoas decidem suas vidas de acordo com o que está acontecendo em volta, e, como as informações correm rápido e as coisas mudam com a mesma rapidez, uma decisão a ser tomada torna-se instável, podendo ser mudada a qualquer momento de acordo a necessidade que virá a seguir.

No esclarecimento de Bauman, “o que aconteceu no século 20 foi uma passagem de toda uma Era da história mundial, ou seja, da sociedade de produção para a sociedade de consumo. Por outro lado, houve os processos de fragmentação da vida humana. [...] No início deste século as pessoas se preocupavam com o projeto de vida e em executá-los passo a passo. Nos dias atuais, isto não acontece, porque a vida é dividida em episódios, fragmentados, o que não era assim no início do século 20. As sociedades foram individualizadas, em vez de pensar em termos de qual comunidade se pertence, a qual nação se pertence, a qual movimento político se pertence etc., tentamos redefinir o significado da vida, o propósito da vida, a felicidade na vida, para o que está acontecendo com a própria pessoa, as questões da identidade de que tem papel importante hoje, no mundo. A pessoa tem que criar sua própria identidade. A pessoa não herda. Não apenas é necessário fazer isso desde o início da vida, mas é necessário passar a vida de fato redefinindo a própria identidade. [...] Muitas mudanças, não apenas a passagem do totalitarismo para a democracia, mas muitas outras coisas mudaram”.

Considerando as ideias apresentadas por Bauman, o lado negativo é a exposição da vida privada na era digital, nas redes sociais. O compartilhamento de fotos, comentários, vídeos etc. não tem critérios e isso causa uma preocupação, pois não é possível filtrar com eficiência o acesso a essas informações, o que hoje é privado, amanhã passa a ser público e vice-versa, e assim a vida acaba por ficar exposta a desconhecidos.

Outro ponto preocupante é o enfraquecimento das relações humanas, porque as pessoas criam “amizades” com facilidade, mas muitas vezes seus contatos são pessoas desconhecidas, adicionadas apenas como um acúmulo na quantidade de amigos, sem que haja de fato um diálogo entre as partes, e ao menor motivo esses contatos podem ser facilmente excluídos.

Diferente de um encontro olho no olho em que se cria um vínculo e o envolvimento pode vir a trazer maiores prejuízos para a vida particular, a solidão por trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular na mão pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do que compartilhar um terreno doméstico comum.

Essa individualização devido à correria do dia a dia, segundo Bauman, é o que marca essa sociedade líquida, pois não afeta somente a cultura, mas principalmente a vida do homem pós-moderno. Bauman acredita que, ante a fragilidade dos relacionamentos, as pessoas estão privilegiando quantidade ao invés de qualidade. Assim multiplicam-se e acumulam-se relacionamentos, buscando-se a salvação nas redes, “cuja vantagem sobre os laços fortes e apertados é tornarem igualmente fácil conectar-se e desconectar-se”, como no Facebook.

Contrariando o sociólogo Boaventura Santos, para quem a sociedade pós-moderna não pode simplesmente ser uma dicotomia estanque da sociedade moderna, mostramos o quadro comparativo entre essas sociedades:

Modernidade sólida

Permanência

Liberalismo Mercadorias Produção Capitalismo industrial Fábrica

Trabalho material

Vigilância do corpo Equipe

Temporalidade contínua/linear

Longo prazo

Futuro Administração Regulamentação

Segurança/biopolítica

População Rigidez/docilidade

Especialista/especialização

Unitário Fronteirizado


Modernidade líquida

Neoliberalismo

Competição

Consumo

Capitalismo cognitivo

Empresa

Trabalho imaterial

Verificação das metas

Rede

Temporalidade pontilhista

Curto prazo

Devir

Gestão

regulação Modulação

Controle/noopolítica

Público

Flexibilidade

Expert/expertise

Fragmentário

Desfronteirizado

Impermanência