Iracema, de José Maria Medeiros
Texto adaptado de Ana Maria Tavares Cavalcanti
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
José de Alencar, 1865.
O jovem açoriano José Maria de Medeiros (1849-1925 ou 26) chegou ao Brasil em 1865, ano em que José de Alencar publicou Iracema. Quase vinte anos mais tarde, já então professor de Desenho Figurado da Academia Imperial das Belas Artes, Medeiros escolheu um trecho do romance de Alencar para tema da pintura que apresentou na Exposição Geral de 1884.
Os professores da Academia, Mafra, Victor Meirelles e Pedro Américo, elogiaram a tela:
Sem que seja movida pela natural simpatia entre colegas que se estimam, não pode a Comissão deixar de assinalar o quadro do Sr. professor José Maria de Medeiros, intitulado Iracema, como um dos melhores da atual exposição, não tanto pela protagonista do drama, como principalmente pelo teatro em que se passa aquela cena que com tanto talento descreveu José de Alencar. É uma paisagem pintada por mão de mestre: desenho correto, colorido brilhante e harmonioso, perfeita observação dos efeitos de perspectiva aérea dão a essa paisagem, verdadeiramente tropical, um céu luminoso e profundo, uma vegetação luxuriosa e cheia de vida, e águas da mais límpida transparência, especialmente naquela onda que arrebenta no primeiro plano do quadro.
Com o aval do corpo acadêmico, o quadro foi adquirido pelo governo para figurar na Pinacoteca da Academia e hoje integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.
Se proponho algumas reflexões a partir dessa tela é porque, de modo inesperado e nada intencional, ela sinaliza uma mudança no meio artístico carioca em meados da década de 1880: a perda de prestígio da pintura histórica e sua substituição, na preferência do público e da crítica, pela pintura de paisagem, cada vez mais valorizada como signo de modernidade e brasilidade.
Nota-se o cuidado de Medeiros ao pintar com minúcias as pequenas pedrinhas na areia da praia, o brilho da onda do mar, as gaivotas voando ao longe, a vegetação abundante, criando um efeito de realidade para satisfazer o espectador, envolvendo-o nas dimensões da tela como num cenário.
A figura da índia demonstra outra preocupação do artista: manter-se fiel à sua formação acadêmica, aos ensinamentos do mestre Victor Meirelles. A pose de Iracema – com a mão sobre o peito e uma das pernas levemente dobrada – nos faz pensar na estatuária clássica e mantém o decoro de um nu oficial, mesmo que adaptado ao realismo vigente. Se estivesse pintada em tamanho natural, Iracema pareceria muito próxima de nós, mas assim como se apresenta sugere uma distância respeitosa e adequada.
Esse mesmo decoro se percebe na escolha do tema retirado do romance de José de Alencar, consenso nacional que pode ser resumido como uma alegoria do processo de colonização. O nome de Iracema é um anagrama de “América”, e Martim, nome do personagem português pelo qual a índia se apaixona, uma referência a Marte, o deus grego da guerra. O encontro entre os dois traz desordem e sofrimento. Mas o triste fim de Iracema é também o início da formação do povo brasileiro, simbolizado em Moacir, seu filho com Martim.
Da narrativa do romance, Medeiros só podia pintar um pequeno instante. O catálogo da Exposição traz uma descrição do momento escolhido:
Inquieta Iracema pela ausência do esposo, sai em busca dele e chega à beira do lago, já quando as doces sombras da tarde vestiam os campos. Encontrando ali fincada, na areia da praia, a flecha do guerreiro transpassando um guaiamum, e de que pende um ramo de maracujá, enchem-se-lhe os olhos de lágrimas, interpretando as ordens que aquele símbolo lhe revela – como o guaiamum deve ela andar para trás, e como o maracujá, que guarda a flor até morrer, conservar a lembrança do esposo. Sem volver o corpo nem desviar os olhos da simbólica flecha, a filha dos Tabajaras retrai lentamente os passos.
As palavras são bem próximas das escritas por Alencar. Nessa passagem está sintetizada a impossibilidade de um encontro feliz entre índios e portugueses. Iracema compreende a mensagem codificada na flecha fincada na areia, deve respeitar a vontade de Martim e deixá-lo partir. Há um aspecto muito significativo na escolha de José Maria de Medeiros: ele expõe uma mensagem cifrada, usa a imagem já pronta deixada pelo escritor, e faz a alegoria de uma alegoria. Se levarmos adiante esse pensamento, podemos afirmar que Iracema, ao retrair os passos no quadro de Medeiros, além de retirar-se da vida de Martim, está também “deixando a cena” para que reste apenas a paisagem, o que de fato estava ocorrendo na pintura brasileira naquele ano de 1884. Mas afinal, como começou essa história? Que papel coube à pintura de paisagem na produção artística brasileira no século XIX?