Carlos Drummond de Andrade


Carlos Drummond de Andrade, aclamado como o maior poeta brasileiro do século XX, foi dono de uma lira de singular sensibilidade: carregou dentro do peito o sentimento do mundo, revirou a sintaxe, propôs uma geometria do amor e um esquadrinhamento do cotidiano.

Gauche, ou seja, dotado de um sentimento de inadequação perene, Drummond foi autor de vasta obra literária, composta de poemas, crônicas, contos, ensaios e literatura infantil juvenil.

Características literárias de Carlos Drummond de Andrade

Enquadrado no chamado modernismo de 30 (Segunda Geração Modernista), Drummond foi definido pelo crítico Otto Maria Carpeaux como o primeiro grande “poeta público do Brasil”. Escreveu contos, crônicas, livros infantis e textos jornalísticos, mas foi por sua grande obra poética que Drummond destacou-se.

Autor de lirismo único e inconfundível, colheu sua poesia de suas inquietações diante de um mundo caduco, recusando todas as respostas prontas e mergulhando em reflexões de tom existencial. Sua lírica foi a mais radical e a mais consciente dos poetas de seu tempo — uma consciência sensível e sentimental.

As principais características do texto drummondiano

Poesia de verso livre e branco: a lírica de Drummond é feita majoritariamente de versos sem métrica regular ou rima, privilegiando um ritmo próprio que se desenvolve em harmonia com a semântica de cada poema.

Preocupação com temas sociais e com temas individuais: essas duas polaridades oscilam constantemente ao longo da poética do autor. Drummond buscou sair de si e olhar para o outro, para a sociedade, mas desse processo decorre também a autoanálise, o questionamento de si mesmo e de sua posição enquanto sujeito no mundo.

Escavação do real: os temas cotidianos do amor, da guerra, da amizade, da realidade em si mesma (tantas vezes dolorosa) foram esquadrinhados pelo poeta por meio da constante interrogação e da reflexão, muitas vezes desembocando em situações sem saída: na negação, no desvelamento do vazio do mundo e do sujeito moderno, no existencialismo, na ausência de sentido.

Humor e ironia: mais frequentes nos seus livros iniciais, foram recursos benquistos pelo autor, quase um instrumento de defesa diante da desintegração da realidade por ele vivenciada. A autoironia, a ironia romântica e a paródia foram recursos utilizados por Drummond — ora com mais leveza e certa alegria, ora com um humor ácido, sério, corrosivo.

Artesanato da linguagem e metapoesia: Drummond trabalhou árdua e intensamente com a linguagem, desintegrando e reintegrando as palavras, reinventando a sintaxe em jogos verbais, transformando e revirando as possibilidades poéticas. Além disso, dedicou poemas ao próprio tema do processo de escrita da poesia, em versos que falam da própria feitura ou da função da poesia em si.

Poesia

É possível dividir a obra poética de Drummond em quatro fases: a fase gauche, que compreende seus livros de estreia; a fase social, que diz respeito a um período de maior militância política do poeta; a fase filosófica, também conhecida como “fase do não”, graças aos poemas em tom desiludido; e a fase memorialista, quando o poeta dedicou livros inteiros aos temas mineiros e itabiranos.


Fase gauche

Mais próxima do modernismo de 1920, caracteriza-se por poemas em linguagem mais sintética, e é quando seus recursos de humor são mais evidentes. São representantes desse período os livros Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934).


No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

(Alguma poesia, 1930)


Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.


O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.


O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.


Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.


Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

(Alguma poesia, 1930)


Fase social

Tocados pelas agruras da Segunda Guerra Mundial e da ascensão do nazifascismo, os poemas entre os anos de 1940 e 1945 envolvem uma militância mais incisiva de Drummond. É o período das publicações de Sentimento do mundo (1940), José (1942) e A rosa do povo (1945).


Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista pela janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicidas,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

(Sentimento do mundo, 1940)

 

O lutador [trechos]

Lutar com palavras

É a luta mais vã.

Entanto lutamos

mal rompe a manhã.

São muitas, eu pouco.

Algumas, são fortes

como o javali.

(…)

Lutar com palavras

parece sem fruto.

Não tem carne e sangue

Entretanto, luto.

Palavra, palavra

(digo exasperado),

se me desafias,

aceito o combate.

(…)

Já vejo palavras

em coro submisso,

esta me ofertando

seu velho calor,

outra sua glória

feita de mistério,

outra seu desdém,

outra seu ciúme,

e um sapiente amor

me ensina a fruir

de cada palavra

a essência captada,

o sutil queixume.

Mas ai! É o instante

de entreabrir os olhos:

entre beijo e boca,

tudo se evapora.

(…)

O teu rosto belo,

É palavra, esplende

na curva da noite

que toda me envolve

(…)

(José, 1942)


Fase filosófica ou fase do não

Marcada por versos em tons mais pessimistas e pela frustração diante da impassibilidade do mundo, que ainda depois dos desastres da guerra permaneceu inalterável, os poemas desse período tendem à melancolia e à reflexão perpétua acerca do estado de coisas.

São desse momento os livros Claro enigma (1951), Fazendeiro do ar (1953) e A vida passada a limpo (1959). A ruptura com essa tendência temática dá-se em Lição de coisas (1962), publicação que consiste de uma poesia dita nominal, isto é, que se concentra no próprio fazer poético e nas estruturas dos vocábulos, aproximando-se do movimento concretista.


Confissão

Não amei bastante meu semelhante,

não catei o verme nem curei a sarna.

Só proferi algumas palavras,

melodiosas, tarde, ao voltar da festa.


Dei sem dar e beijei sem beijo.

(Cego é talvez quem esconde os olhos

embaixo do catre.) E na meia-luz

tesouros fanam-se, os mais excelentes.


Do que restou, como compor um homem

e tudo que ele implica de suave,

de concordâncias vegetais, murmúrios

de riso, entrega, amor e piedade?


Não amei bastante sequer a mim mesmo,

contudo próximo. Não amei ninguém.

Salvo aquele pássaro — vinha azul e doido —

ue se esfacelou na asa do avião.

(Claro enigma, 1951)


Fazenda

Vejo o Retiro: suspiro

no vale fundo.

Retiro ficava longe

do oceanomundo.

Ninguém sabia da Rússia

com sua foice.

A morte escolhia a forma breve

de um coice.

Mulher, abundavam negras

socando milho.

Rês morta, urubus rasantes

logo em concílio.

O amor das éguas rinchava

no azul do pasto.

E criação e gente, em liga,

tudo era casto.

(Lição de coisas, 1962)


Fase memorialista

Entre as décadas de 1970 e 1980, o poeta voltou-se para suas memórias e passou a reconstruir cenários de Itabira, da infância, relacionados ao cotidiano com a família, recompondo certo humor e ironia. É o momento de publicação da série Boitempo (1968, 1973) e de outros títulos em prosa. Também de 1973 é a publicação de As impurezas do branco, de lírica menos memorialista e mais crítica e contundente.


Boitempo

Entardece na roça

de modo diferente.

A sombra vem nos cascos,

no mugido da vaca

separada da cria.

O gado é que anoitece

e na luz que a vidraça

da casa fazendeira

derrama no curral

surge multiplicada

sua estátua de sal,

escultura da noite.

Os chifres delimitam

o sono privativo

de cada rês e tecem

de curva em curva a ilha

do sono universal.

No gado é que dormimos

e nele que acordamos.

Amanhece na roça

de modo diferente.

A luz chega no leite,

morno esguicho das tetas

e o dia é um pasto azul

que o gado reconquista.

(Boitempo I, 1968)


Prosa

Confissões de Minas (1944)

O gerente (1945)

Contos de aprendiz (1951)

Passeios na ilha (1952)

Fala, amendoeira (1957)

A bolsa e a vida (1962)

Cadeira de balanço (1966)

Versiprosa (1967)

Uma pedra no meio do caminho - biografia de um poema (1967)

Caminhos de João Brandão (1970)

Os dias lindos (1977)