Mestre Didi

TALES PINTO

A formação populacional brasileira tem em seus componentes a expressiva participação das populações oriundas da África, principalmente Ocidental e Meridional, o que acarreta uma participação também na formação cultural do Brasil. Uma das principais formas de expressão cultural das populações de origem africana está relacionada à religião trazida para terras americanas. Vale ressaltar que a religião funciona como elemento de conformação da organização social determinando comportamentos, expressões estéticas, estruturas hierárquicas e transmissão de conhecimentos.

No contexto dessa influência africana no Brasil é proposto aos professores um trabalho de análise centrado em Mestre Didi. Nascido em 1917 como Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi é artista plástico, escritor, sacerdote afro-brasileiro e descendente da linhagem dos Asipá. Essa ligação o remete a grandes caçadores e exploradores das nações de Oyo e Ketu, localizadas no território onde hoje está a Nigéria. Sua iniciação sacerdotal se deu aos 7 anos e é hoje o iniciado mais antigo, sendo Sumo Sacerdote Alapini - Ipekun Oye - a mais alta hierarquia no culto aos ancestrais na tradição Ioruba.

O interesse no estudo dessa personalidade se deve ao fato de centrar uma série de práticas de manutenção da tradição africana, portadoras de aspectos culturais correspondentes aos vários reinos de onde foram trazidos os africanos escravizados, principalmente da África Ocidental e Meridional. Dessa forma, é possível utilizar a história de vida e produção de Mestre Didi como ponto de partida para um trabalho pedagógico interdisciplinar, envolvendo as disciplinas de história, artes e ensino religioso.

Como artista plástico, Mestre Didi transmite os costumes, hierarquias, línguas, concepções estéticas, dramatizações, literatura e mitologia dos povos africanos, sobretudo a sua religião, visão de mundo e universo simbólico, possibilitando um conhecimento mais aprofundado aos alunos sobre as influências dessa cultura na formação nacional brasileira.

Em suas obras, Mestre Didi manipula materiais e formas, objetos e emblemas que expressam as entidades sagradas, unindo a produção artística à prática religiosa. Descendente de uma antiga linhagem ketu, foi iniciado no culto do orixá Obaluaiyê, que juntamente aos orixás Nanã e Oxumaré constituem o Panteão da Terra para os Iorubas, servindo esses orixás como inspiração para suas produções. Como parte do Panteão da Terra, a força desses orixás estaria em elementos naturais como plantas e alguns objetos minerais, o que levou Mestre Didi a utilizar em suas esculturas materiais retirados da natureza, como palhas de palmeiras, conchas e búzios. As cores utilizadas também remetem a princípios sagrados, tendo por base o preto, o vermelho e o azul.

No aspecto da organização social, Mestre Didi deu continuidade a sua herança africana e as suas diversas iniciações ao criar, em 1980, o Ilê Asipá,  uma comunidade e terreiro de culto aos ancestrais Egum, onde são zelados os antepassados da linhagem Asipá e aqueles ancestrais trazidos da África. Com essas ações, Mestre Didi se tornou um dos principais sacerdotes de origem africana no Brasil, exercendo forte influência em Salvador, principalmente.

A proposta pedagógica aqui sugerida direciona a análise de Mestre Didi e das heranças africanas na população brasileira em três vertentes: histórica, artística e religiosa.

Na vertente histórica é possível pesquisar a origem de parte da população africana que vive no Brasil, sua localização no continente africano e sua expressão cultural, bem como a manutenção de suas expressões culturais em solo brasileiro, principalmente nos aspectos religiosos, artísticos e mesmo na manutenção da tradição de organização social, no caso a ancestralidade de Mestre Didi.

Nas artes, as esculturas desenvolvidas como forma de expressão da religiosidade podem ser trabalhadas na análise das técnicas de produção, como os tipos de materiais usados e as formas dadas aos objetos, além de mostrar como isso reflete as concepções religiosas de Mestre Didi. Em resumo, o objetivo é analisar a união entre a estética e a religião na produção artística.

No âmbito do ensino religioso, as esculturas produzidas por Mestre Didi podem ser utilizadas para apresentar a hierarquia e conteúdos das divindades Iorubas, o significado de cada uma dessas divindades e como a manutenção dessas formas de expressão e religiosidade é um patrimônio que tem sido mantido pelos descendentes de africanos que vieram escravizados para o Brasil.

LITERATURA

Escritor, sacerdote e estudioso da religiosidade afro-brasileira, além de escultor consagrado dentro e fora do país, Deoscóredes Maximiliano dos Santos – o Mestre Didi – nasceu em 2 de dezembro de 1917 em Salvador, Bahia. Filho do alfaiate Arsenio dos Santos e de Maria Bebiana do Espírito Santo, também conhecida como Mãe Senhora ou Mãe Preta do Brasil, título que recebeu na cidade do Rio de Janeiro em 1965. Mestre Didi é descendente da tradicional família Asipà, originária de Ketu, importante cidade do império Yoruba, e desde menino esteve cercado por personalidades ligadas à preservação e manutenção das religiões e culturas africanas na Bahia e no Brasil. Sua tetravó, D. Marcelina da Silva, foi uma das fundadoras da primeira casa de tradição nagô na Bahia, o Ilê Àsè Aira Intile, depois Ilê Iya Nassô. Mestre Didi recebeu através de Mãe Aninha, fundadora e primeira Iyalorixá do Ilê Axe Opó Afonjá, o título de Assogba, isto é, supremo sacerdote do culto de Obaluaiyé, quando tinha apenas 14 anos. Em 1967, visitou a Nigéria e o Daomé em missão patrocinada pela UNESCO, a fim de realizar estudos comparativos entre a tradição dos orixás da Bahia e da África. Por esta ocasião, entrou em contato com descendentes de sua família que ainda residiam em Ketu. Foi fundador, em 1974, da SECNEB – Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil e, em 1976, da Mini-Comunidade Infanto-juvenil Oba Biyi. Em 1980 fundou o seu próprio terreiro – o Ilê Asipà – onde deu continuidade à tradição religiosa Nagô. Na mesma década inaugura o INTECAB – Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-brasileira.

Com a sua literatura, Mestre Didi não se limitou ao folclore, narrou a história da cultura africana na Bahia e registrou antigos Itáns, contos que fazem parte do patrimônio sagrado da tradição nagô

Baseadas na oralidade, tais narrativas ganham a chancela do texto impresso, sendo editadas no Brasil e no exterior. 

Mas sua primeira publicação, em 1946, foi Yoruba tal qual se fala, um dicionário contendo o registro da língua. De acordo com Muniz Sodré, o livro “chama a atenção sobre a existência e a persistência de utilização de uma língua africana, como meio de identificação e comunicação de grupos afro-brasileiros concentrados nos terreiros”. (Apud DIDI: 1976). 

Já em seu livro Axé Opó Afonjá, o autor fez uma narrativa historiográfica das comunidades Ilê Axé e uma análise da influência da cultura africana na sociedade brasileira.

Com a intenção de expandir a compreensão da cultura e religião africanas, escreveu artigos para várias revistas científicas. Em co-autoria com sua esposa, Juana Elbein dos Santos, publicou, em 1969, no Journal de la Societé des Americanistes, um estudo sobre a história dos cultos africanos na Bahia, sobretudo sobre o culto aos egungun, até então praticamente desconhecido dos meios acadêmicos. Este texto mais tarde foi traduzido e editado no livro Olóòrisá com o título de “O culto dos ancestrais na Bahia: o culto dos Egun.” Em 1971, publica em Paris na revista Colloques Internationaux du Centre Nacional de la Recherche Scientifique, número 544, um artigo chamado “Èsú Bara, Principle of Individual Life in the Nàgó System”, onde pela primeira vez aparece uma elaboração científica correta do significado do orixá Exu, nomeado erroneamente pelo cristianismo como o diabo. E, em 1973, saiu publicado no livro Iemanjá Mãe do Orixás, seu texto “Iemanjá e os Cultos Antepassados”, considerado de grande importância para a compreensão das relações entre tradição nagô e Igreja Católica. Em reconhecimento a todo este trabalho, recebeu em 1999 o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia.

Suas esculturas, consideradas como recriações e interpretações pessoais dos símbolos dos orixás, foram expostas por diversos museus e galerias de arte de vários países. Em 1989, foi um dos três brasileiros a participar da histórica mostra Magiciens de la Terre (Mágicos da Terra), no Centro Pompidou, em Paris, organizada por Jean-Hubert Martin, que contou com cem artistas. Os outros brasileiros foram Cildo Meireles e Ronaldo Rêgo. A exposição foi um marco na abertura de espaço para culturas fora do eixo Europa-Estados Unidos e por apontar como arte contemporânea obras de difícil classificação, como é o caso da produção de Mestre Didi. Já em 1996, participou da XXIII Bienal de São Paulo, onde foi homenageado com uma sala especial. E, em 2009, realizou uma de suas últimas exposições: o Museu Afro Brasil apresentou uma retrospectiva com cerca de 50 obras do artista.

Mestre Didi faleceu no dia 6 de outubro de 2013, aos 95 anos. Deixou publicadas dezenas de contos em que estão presentes fatos, personagens e saberes pertencentes ao vasto território cultural afro-brasileiro.

OBRAS 

Contos

Contos Negros da Bahia. Rio de Janeiro: Editora GRD, 1961.

Contos de Nagô. Rio de Janeiro: Editora GRD, 1962.

Contos crioulos da Bahia, narrados por Mestre Didi. Petrópolis: Vozes, 1976.

Contos de Mestre Didi. Rio de Janeiro: Editora CODECRI, 1981.

Contos negros da Bahia e Contos de nagô. 2 ed. Salvador: Editora Corrupio, 2003.

Não ficção

Yorubá tal Qual se Fala. Dicionário-vocabulário iorubá e português. Salvador: Editora e Livraria Moderna, 1946.

Axé Opó Afonjá. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro e Estudos Afro-Asiáticos, 1962.

Èsú Bara, Principle of Individual Life in the Nàgó System. In: Colloques Internationax du Centre Nacional de la Recherche Scientifique, nº 544, Paris, 1971.

Iemanjá e oculto dos antepassados. In: SELJAN, Zora A. O (org.). Iemanjá Mãe dos Orixás. São Paulo, Ed. Afro-brasileira, 1973.

Os cultos dos ancestrais na Bahia: o culto dos egun. In: Olóòrisá. Escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo: Ed. Ágora, 1981. (co-autoria com Juana Elbein dos Santos)

A cultura negra continua nas mãos dos seus donos... In: COSTA, Haroldo. Fala Crioulo. Rio de Janeiro: Record, 1982. (Depoimento)

Mito da Criação do Mundo. Recife: Editora Massangana, 1988.

História de um Terreiro Nagô. São Paulo: Editora Max Limonad, 1989.

Ajaka. Salvador: Edições SECNEB, 1990.

Por que Oxalá usa ekodidé. Rio de Janeiro: Pallas, 1997.

Antologias

Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 1, Precursores. Organização de Eduardo de Assis Duarte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.