Um camafeu perdido
Não, caro leitor, não me vanglorio de ter o título, invisível e imensurável, no estandarte de minha consciência, de ser um herói da sobriedade; até mesmo porque, desde sempre, soube que essa proeza nunca me coube e, por ordem da natureza, nunca me caberá. Hei de admitir que a seriedade nunca fora para mim uma forma característica. Sou deteriorado por nascença. Alguns, inclusive, ousariam-me a dar a alcunha de safado. Oh!, perdoe-me pela indignidade dessa última palavra. É que sói acontece espontaneamente, como se algumas palavras se atrevessem a saltitar de minha boca.
Sigamos! Eu diria com certa tranquilidade que todos que conhecem o meu riso de esguelha, por ora me denunciariam, mas já possuem em jazigo piores julgamentos sobre mim. Alguns têm a nobreza e a coragem - mais nobreza que coragem - de me comentarem pela frente; outros, preferem tecer teorias por trás, às sombras, onde acredito deva ser mais prazeroso. E desde sempre foi assim. Meu olhar é, por sua vez, o meu maior traidor nesse eterno quesito imberbe.
Outra conversa que pretendo ter com o nobre leitor é que, mui amigavelmente, pretendo explicar que eu fui sincero desde o começo deste diálogo, portanto, por honra e apreço, devo esclarecer alguns detalhes que me competem. Pois bem!, é verdade que nunca traí. Nem sequer uma única vez. Contudo, não me cabe, nem mesmo por um milésimo de segundo, a responsabilidade de assumir a consciência alheia; os atos de outrem. Assumo assim, sob uma coroa de louros, as minhas próprias atitudes, ainda que estranhas e questionáveis.
Foi numa dessas ciladas sentimentais regidas por espasmos amorosos que meu coração tamborilou a um rufo de ópera dramática. Não que eu tenha me tornado uma criatura patética, arraigado a essa nova paixão – mal tão combatido pelo Bardo. Não permitiria, de nenhum modo, que essa situação hipotética algum dia viesse deveras a se reproduzir; porém, seria possível dizer que eu havia me tornado o homem mais vulnerável que serpenteia por entre aquelas personagens recém-saídas de um roteiro do dramaturgo inglês William Shakespeare. Não resisti ao calor do corpo - daquele corpo. E nem queria. Já era tarde demais para tanto [...].
Nunca me veio à cabeça o tormento de ter alguma culpa por Iaiá preferir as tardes quentes comigo a tê-las com o seu mais novo rapazote. Eu não tenho nenhum ressentimento enquanto a isso, já que eu a conheci primeiro. Tão certo quanto justo, os Céus haveriam de dar razão a mim. Custa-me esquecer dos seus lábios tocados tão suavemente pelos meus, ainda que por provocação. Ficava a me perguntar como seu corpo poderia ser tão aveludado de tal modo; de uma forma a me atrair como uma presa diante de uma cilada qualquer. Era uma verdadeira obra divina, confesso.
Mas o que mais me inquietava naqueles dias de sol a pino é que ela me desejava ardentemente a ponto de me seduzir por puro capricho. Ora, leitor, eu sou feito de carne, osso e desejos; tente me compreender. Não me julgues imoral, pois, mais adiante, é possível que leves um susto ainda maior.
Confirmava naquele instante minha própria condição de reles mortal, e tinha plena consciência desse meu defeito humano ao vê-la despida em lençóis alvos como a prata do Paraíso. Mas deixemos Iaiá em paz e pulemos para o próximo capítulo.
Custou-me a livrar de Iaiá; seja pelo desejo que ela nutria por mim ou simplesmente por eu não ter tido a coragem de pedir-lhe que fosse embora de minha história. Mas bem, a vida prossegue. Iaiá havia partido; fora morar em outra cidade, desta vez, longe da minha, e eu estava agora um tanto livre para me pendurar em outros pescoços. Hei de perguntar a Deus se nunca me livrarei desses desejos que me atormentam e causam em mim tamanha comichão.
O que me restara foi um banco vazio e a esperança de encontrar forças suficientes para ver o tempo passar enquanto minha hora não chagava; não de morte, mas de vida. E como ela pôde ser engraçada! Ao cruzar dos ponteiros, às dezessete horas daquele dia de semana, mais precisamente de uma quinta-feira, me apareceu uma alma jovem a trocar poucas palavras comigo. Eu já a conhecia. Não mensurarei o seu nome pelo pouco de caráter que ainda me resta. Decidi privar-lhe a identidade.
Com o mesmo poder da escrita shakespeariana, advinha-me o domínio da previsão – saberia eu que aquela figura cândida seria minha próxima Iaiá. Peço-lhe que não se irrite, caro leitor. Há de me desculpar por esta desilusão. Devia eu ser mais romanesco, mas se eu cumprisse tal roteiro deixaria esta de ser esta uma história inebriada de autenticidade. A pura realidade é que me entreguei ao meu novo romance como quem conhece Paris pela primeira vez. Agora, Iaiá não passara de uma vaga lembrança, de uma quimera outrora.
O deleite foi inevitável de tal modo que os dias se perderam em minhas contas. Quanto tempo andei pelo paraíso? Não fiz questão de contabilizar. Passei o início do inverno a desejar que os dias se rompessem mais lentamente e não me importei com o frio que fazia por aquelas bandas. O que eu mais desejava era saciar os meus desejos mais íntimos; e por obra do Divino - ou do cão-tinhoso - eles foram cumpridos. Dado o tempo certo, passou-se. E nunca mais se repetiram as tardes de maio. O quão pode ser ingrata uma desventura amorosa. Eu, como exemplo maior, não me importo mais. Já estou calejado. Foi-se o tempo.
[...] Casaram-se uns, separavam-se outros, e eu continuava às moscas. Deixei de consultar o passado, ergui as mangas e segui com o tempo. Nada de remorso, não havia espaço para amarguras dentro dos meus dias pálidos e entediantes. Entretanto, havia continuado solteiro, sem ninguém ao meu lado. Não me culpe, não culpe o destino. Eu sou um solteirão à moda antiga. Não acredite que por conta disso fiquei casmurro ou menos charmoso. Pense que agora eu terei mais motivos para ir a Berlim procurar por uma nova ilusão. Nunca se sabe quem será a próxima pessoa a entrar em sua vida de forma a se ver obrigado a erguer as sobrancelhas. Dito isto, encerro, prezado leitor, com louvor, este diálogo.
Com os meus melhores cumprimentos, agradeço pela paciência e atenção,
Alecto Grego