O mito do amor romântico

ADAPTAÇÃO DO TEXTO DE LEONARDO CHAGAS

O trovador Guilherme de Aquitânia (1071–1127) foi um dos primeiros poetas líricos da idade média, sendo assim, um dos primeiros poetas do amor cortês – o fin’amor. Apesar de ser um nobre, tinha como característica de sua escrita temáticas hegemonicamente eróticas e contra a moral e os bons costumes. Resistiu a diversas ameaças de ser excomungado e seguiu com a produção de sua arte subversiva.

É sabido que o amor cortês surge no século XII na França esse amor se trata não de um delírio individual, de uma exceção, de um extravio cultural, mas surge como um estilo de vida, um dado cultural da sociedade da época, uma filosofia que indica a idealização de uma vida superior, para além das noções tipicamente dadas pela igreja ou pelas doutrinas filosóficas da grande nobreza. O fin’amor surge a partir da poesia, ainda que fruto de uma expressão da nobreza feudal, não nasce em um grande império, hegemônico politicamente na Europa, mas, sim, de um conjunto de senhores semi-independentes que insistem na noção do amor como princípio central de seu pensamento e obra.

O amor cortês é sobretudo um advento do século XII, historicamente conhecido como o século do nascimento pelos europeus. Nesse período da idade média, surgem fundamentais criações da civilização ocidental, como a poesia lírica e a ideia do amor como princípio, ou estilo de vida. Percebemos como esta construção do amor é social e histórica. Encontraremos na voragem do século esse mesmo amor em críticas de William Shakespeare, no Romantismo, que floresceu pelo mundo a partir do século XVIII e, por fim, na bossa nova, na segunda metade do século XX, no Brasil.

Há referências desse conceito na mitologia que remonta a Platão. No mito grego, os amantes perfeitos viviam unidos e foram separados em dois. O amor, portanto, é o desejo de encontrar aquela metade que se perdeu. No entanto, não se pode dizer de que esse amor visto entre os gregos se trata do mesmo amor moldado de acordo com os anseios construídos a partir da Idade Média.

A epigenética, conjunto de modificações de nosso material genético, indica que existe uma relação entre as experiências sociais, a expressão dos genes, as mudanças neurobiológicas e a variação na conduta. O que indica que o entorno social penetra em nossa mente por mecanismos epigenéticos e afetam nossa descendência. Ou seja, os efeitos produzidos pelas experiências sociais podem ser transmitidos pela linhagem genética, moldando quem somos e consequentemente a sociedade a qual pertencemos.

Se as emoções, os pensamentos conscientes e as crenças inconscientes de fato fazem parte de nosso entorno social e influenciam nossos genes através dos mecanismos epigenéticos, quais são as possíveis consequências, em longo prazo, do mito do amor romântico?

O EROTISMO E O AMOR NO MUNDO PROVENÇAL

“Eros pode confundir-nos e levar-nos a cair no pântano da concupiscência e no poço do libertino; também pode nos elevar e levar-nos a mais alta contemplação. Isso é o que chamo de erotismo, ao longo dessas reflexões e o que tento distinguir do amor propriamente dito. Repito, falo do amor tal como o conhecemos desde a Provença. Esse amor, embora existisse em forma difusa como sentimento, não foi conhecido pela Grécia antiga nem como ideia, nem como mito. A atração erótica por uma única pessoa é universal e aparece em todas as sociedades; a ideia ou filosofia do amor é histórica e brota só onde existem circunstâncias sociais, intelectuais e morais.

Platão sem dúvida teria se escandalizado diante do que chamamos de amor. Algumas de suas manifestações lhe seriam repugnantes, como a idealização do adultério, o suicídio, a morte; outras o teriam assombrado, como o culto à mulher. E os amores sublimes como o de Dante por Beatriz ou de Petrarca por Laura, pareceriam a ele doenças da alma.

A partir deste trecho, de Octavio Paz a respeito do conceito de Eros, e suas diferentes concepções de acordo com o tempo histórico, antiguidade, idade média, modernidade, é importante que seja minimamente delimitado o conceito de “amor” e “erotismo” para os poetas provençais. 

Na primeira poesia medieval, aquele que amava era também alguém que temia, e se angustiava, ao pensar na hipótese da perda ou da impossibilidade da conquista. A ideia do amor que trazia encantamento aos homens provençais em sua maioria, tratava-se de um amor, que fosse capaz de lhes trazer a completude, quando concretizada a união, era a busca pela poção milagrosa de Tristão e Isolda, capaz de unir os amantes e assim os completar enquanto seres.

O ato de cantar poemas, era para o homem provençal uma grandiosa virtude, a experiência da poesia, no entanto, estava intrínseca a sua filosofia de vida, se trata de uma necessidade condicional de existência, a felicidade, ou seja, o objetivo da vida dos homens medievais, estavam estritamente vinculados à conquista do amor pleno, e para conquistá-lo não era só necessário amar, mas, sim, realizar, a poesia. No entanto, não é apenas o meio para estes homens, mas é também a finalidade, pois esta, para além de permitir aos adeptos a realização de seus desejos, também os permitia se elevar por meio do fazer poético, a poesia lírica surge como um ato nobre em todos os sentidos.

Os provençais da primeira fase, como é o caso de Guilherme, cantam o amor, a alegria, e a juventude, para além de estabelecerem regras iniciais na arte da lírica, no ato de “trobar”, vão além da elaboração artística, e passam a serem constitutivos para a experiência humana, no sentido de definirem as regras de uma refinada “arte de amar”, em que inclusive, a figura da mulher, passa a ser fundamental, ela a partir da poesia provençal é quem conduz o erotismo dos versos, é a ela quem o trovador deve obedecer e servir. O fin’amor, no entanto, surge como oposição não apenas aos tradicionais contratos sociais amorosos, estabelecidos pela igreja, a partir da instituição do casamento, estabelecendo a vida de regra das relações entre o sexo, mas também se opõe à ideia de pura satisfação dada pelo comércio sexual, que faz da mulher um mero objeto de prazer.

O amor para os provençais é inseparável do desejo, mas também da cortesia, que emana da ideia de cortes, onde esta cultura nasce, e tem como objetivo separá-los dos amantes vulgares, esta distinção é, no entanto, uma distinção não só social, mas também intelectual, já que se contrapõe à nobreza inculta. Para além disto, a experiência do amor provençal, ou seja, a chamada “arte de amar” é do início ao fim uma pulsão erótica, dado que o movimento de conquista, se dá a partir da observação (olhar) e culmina na concretude da ação, quando o observador, torna-se amante (drutz).

O fin’amor era também em princípio, herege, dado que a igreja condenava qualquer manifestação erótica ou sexual que não tivesse como finalidade a procriação, mesmo que dentro de uma relação matrimonial, sendo assim, a poesia provençal, não só ignora os princípios da igreja, mas também exalta o prazer físico, que nada tem a ver com as finalidades da formação de família propriamente, principalmente quando se trata de Guilherme IX, como já visto anteriormente. Enquanto a igreja elevava a castidade como principal virtude, os trovadores pensavam em uma exaltação extremamente terrena, que ainda é misteriosa, mas trata-se de um prazer físico e espiritual que eles mesmos chamavam de “Joi”, que se tratava da recompensa dada pelo amor, não se tratava tão somente do gozo, ou da simples alegria, mas de uma felicidade indefinível, idealizada, tal qual o céu para os cristãos, porém não ocorre com o advento da morte, mas surge como uma graça natural dos amantes de desejo depurado.

Muito desta experiência reflete um tanto a erótica árabe, que os provençais tiveram contato com o advento das cruzadas, pois é imprescindível aos trovadores a experiência amorosa. O amor é fruto de um refinamento social, incorporado pelo poeta, não se trata de uma mera tragicidade, pois o sofrimento do poeta existe para que possa ser alcançado o seu objetivo final: a “joi”. 

A união entre o gozo e a contemplação, a partir do mundo natural e do espiritual, não se trata do gozo físico, meramente, o gozo é parte de um processo de purificação do amante, que é capaz de iluminá-lo. O amor é um mistério, é privilégio de poucos e almejado por muitos. É a busca e o objetivo fim dos provençais a partir da conquista e experimentação da “joi”.

“Farai un vers pos mi somelh”, o poema do qual realizei uma tradução, trata-se do poema provavelmente mais sensual e satírico de Guilherme. Um poema carregado de sentidos eróticos carnais e metáforas acerca do ato sexual. É neste poema, que mais se evidencia o caráter libertino e dinamismo da vida mundana. O trovador relata uma situação entre ele e duas senhoras, que ao se enganarem que o próprio é incapaz de falar e ouvir, o levam para dias de sexo em um castelo. Há a imagem da dor física representada pelo arranhar de um grande gato em suas costas. É interessante notar a imagem da dor atrelada ao ato sexual, no século XII, muito antes de Marquês de Sade e demais poetas eróticos, que se empenharam em escrever e refletir a respeito da sexualidade, perversões humanas e suas representações literárias.

O poema também possui um clima primaveril em que as pessoas conversam e se cumprimentam nas ruas. Também traz a imagem do sonho, que pode ser associada ao delírio provocado pelo desejo carnal. Essas imagens serão tratadas incansavelmente na literatura universal, a partir de então, até a contemporaneidade.

A tela de Pierre Mignard, pintada em 1694, retrata Chronos, deus do tempo, cortando as asas de Cupido, deus do amor, o equivalente na mitologia romana ao deus grego Eros. Há uma possível interpretação de que o tempo venceu o amor (romântico) aos olhos do artista. Outros acreditam que Chronos corta as asas para que ele ponha os pés no chão, sendo uma metáfora para o uso da razão. Ele, portanto, não necessariamente teria derrotado o amor, mas o torna realista, um amor que tem asas, mas não perde o chão.

A tradução abaixo, trata-se de um poema em que as senhoras não denotam respeito ou cortesia, mas agem instintivamente, trata-se ainda de um relato de amor vulgar, carnal. No entanto, é presente no poema o julgamento moral explícito sobre as duas senhoras em que o trovador afirma que a mulher que trai seu senhor deve sofrer as consequências da lei e ser queimada por um tição por cometer um pecado mortal, imperdoável. 


Um verso faço, pois estou sonhando


I.

Um verso faço, pois, estou sonhando

caminho, ao sol que vai raiando

perversas mulheres por aí vão andando

e sei eleger o tipo qual

aquelas que o amor do cavalheiro

levam a mal.

 

II.

Tal dama que comete um pecado mortal

que não dá amor ao cavalheiro leal

mas sim ao monge ou ao clerical fá-lo

sem razão

pois devem ser queimadas por lei

por um tição

 

III.

Para Auvérnia, perto de Leimosinho

apenas com uma capa, caminhei sozinho

Encontrei com a mulher de dom Guarinho

e a de Dom Bernardo

me deram as boas-vindas, rapidinho

por São Leonardo.

 

IV.

Uma me disse em seu latim

“Deus o abençõe, Dom Peregrim

Você parece bom e raros homens são assim

corretos e bem educados

pois quanto mais andamos por este mundo

mais encontramos amalucados.


V.

Juro a vocês, que não respondi

nem bla bla bla, nem tititi

nem ferro lá, ou madeira aqui

foi só

barbarian, barbariol

barbarió.


VI.

Dona Agnes falou a Dona Ermelina, então:

“Encontramos, o que queríamos, perfeito

varão

pelo amor de deus, levemos de prontidão

é todo mudo, o coitado

assim para ninguém nosso segredo

será revelado

 

VII.

levou-me sob um manto, para me esconder

e dentro do seu quarto, para me aquecer

havia uma lareira, belo, bom de viver

O fogo era bom

e segui me aquecendo, tranquilo

próximo ao carvão

 

VIII.

Para comer, me deram frango capão

mais de dois, grande refeição

Não tinha cozinheiro, mais ninguém no salão

em companhia nossa

só os pães que eram brancos, o vinho bom

e a pimenta grossa.

 

IX.

“Irmã, se este homem age de forma falsa

e se faz de mudo, só por causa nossa

veja se está acordado o nosso gato rosa

Traga ele, o fará falar.

Se for de todo mentira

o que estás a contar.


X.

Dona Agnes se pôs a buscar o gato

era enorme, um bigodudo nato

e quando o vi, na sala nós quatro

me assustei tanto

que por quase perdi o valor

e o encanto.

 

XI.

Após o vinho e a comilança

me desnudei e não só a pança.

Por trás, o gato feito lança

mal e feroz,

a dama arrastou das costas aos calcanhares

o meu algoz

 

XII.

A dona o puxou pelo rabo, de improviso

me arranhou sem sequer aviso

mais de cem chagas onde antes era liso

ele me causou

mas eu sequer me movi na hora

não me matou.

 

XIII.

“Irmã” dessa vez disse Agnes, contudo:

“Está claro agora, que o tipo é mudo”

“preparemos um banho, com direito a tudo

para descansar”

Por oito dias, e talvez mais naquele forno

estive a passar.

 

XIV.

Tanto as fodi, que é difícil dizer

cento e oitenta e oito vezes a meter

por pouco não vi minhas correias romper

até meu arnês

e não posso nem dizer o quão mal me senti

o quanto ainda me dói esta vez.

 

XV.

Não posso mal dizer minhas angústias

e o quanto ainda me dói esta vez