Capitu traiu Bentinho?

Will Assunção


A polêmica, considerada uma das mais antigas da literatura brasileira, gira em torno de uma típica hesitação machadiana: Capitu traiu Bentinho? É muito provável que para o autor essa indagação esteja longe de ser significativa porque a intenção do próprio Machado é a de percorrer os caminhos da ambiguidade para que o leitor preencha por si mesmo as lacunas existentes no romance.

O Bruxo do Cosme Velho usou de sua genialidade para responder a essa mesma pergunta no romance realista. Dom Casmurro, de 1899, traz um questionamento que põe uma pulga atrás da orelha do leitor ao longo da narrativa. É mesmo possível que Ezequiel seja filho de Escobar – o melhor amigo de Bentinho?

É preciso levar em consideração que Machado de Assis, um dos maiores escritores da literatura brasileira, arrastava consigo uma frustração por não ter se tornado o Shakespeare brasileiro do teatro, muito embora tenha alcançado a celebridade ao ser visto como o bard brasileiro do romance.

Machado não desvenda o quebra-cabeça sem antes fazer o leitor se contorcer de dúvidas. Afinal de contas, Maria Capitolina traiu ou não Bento Santiago? O primeiro passo para desvendar a suspeita é saber que Machado fez uso da intertextualidade em Dom Casmurro, ao considerar Otelo – obra do inglês de Stratford William Shakespeare – como ponto de partida para compor suas personagens.

Podemos entender por intertexto a influência de um texto sobre outro que o toma como modelo e que gera a atualização do texto citado. É a utilização de uma multiplicidade de textos ou de partes de textos preexistentes de um ou mais autores, de que resulta a elaboração de um novo texto literário.

Bento Santiago – o protagonista da história – é também o narrador. Como ele mesmo diz no romance, “o meu fim evidente era atar as duas pontas da vida”, ou seja, contar os acontecimentos, unindo a juventude à velhice, pela própria perspectiva. Assim como o próprio nome do livro o retrata, Betinho é sorumbático, introvertido e mimado, e se revela alguém parcial e pouco confiável. Há quem diga também que a própria personagem preenche todos os requisitos de um verdadeiro canalha.

Ao retornar a Otelo, é fácil perceber a intertextualidade existente entre as obras dos dois grandes autores da literatura universal. No romance, o autor chega a mencionar a obra de Shakespeare três vezes. Inclusive, em um capítulo de Dom Casmurro, o próprio Bento Santiago adentra o teatro onde a peça Otelo é encenada no momento.

Em um simples resumo, Otelo, escrito ainda no início do século XVII, apresenta o protagonista homônimo ao nome da obra, que é induzido por Iago, figura sorrateira e ardilosa, a matar Desdêmona, esposa da personagem central. Otelo fatalmente acaba acreditando que sua esposa o traiu e a mata, só depois então descobre que ela era inocente. No romance, Bentinho cogita tolher a vida de Capitu e do seu filho, ainda criança.

O capítulo 62 do romance, inclusive, nomeado “Uma ponta de Iago”, serve como referência explícita a Otelo. Iago, como traidor, instiga o ciúme no general mouro, levando-o a assassinar sua fiel esposa Desdêmona, como já dito anteriormente. José Dias encarna a personagem Iago; Bentinho, Otelo e Capitu, Desdêmona.

O Bruxo do Cosme Velho, por meio da personagem de Bentinho, cria uma imagem subvertida de Capitu. É possível encontrar esse flagrante na passagem em que o próprio Betinho reproduz a fala do agregado da família ao se referir a Capitu. “[...] Apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... [...] São assim de cigana oblíqua e dissimulada”.

A ideia é fazer com que o leitor crie um falso imaginário de Capitu, aniquilando a moral da personagem – como fez Iago, pelas mãos de Otelo, com a vida de Desdêmona na obra de Shakespeare. Machado induz, estrategicamente, a quem lê página por página a acreditar que a nossa cigana oblíqua de olhar dissimulado possui comportamento e personalidade de uma mulher no corpo de uma menina, que seduziu Bentinho.

Há uma pista crucial deixada por Machado no nome do protagonista do romance: Bento Santiago. O primeiro nome (Bento) nos confere o sentido de sacrossanto e Santiago reforça a ideia do nome anterior (Sant)Iago, elemento fundamental para entender a construção da personagem que narra a história.

Ao analisar a obra machadiana mais profundamente, a genialidade do autor fica evidenciada no próprio romance. Entretanto, só é possível saborear por quem entende minimamente as entrelinhas escritas com a “pena da galhofa” pelo bard brasileiro ao se inspirar em Otelo.