As herdeiras de Mira Bêra

Will Assunção 

No Domingo da Septuagésima, dia do período santo de preparação para a Páscoa, um tropeiro de serviço provindo das Lavras Diamantinas, de passagem pela antiga vila que ganhara a promessa política de se elevar à condição de distrito, optou pelo descanso às sombras de um dos comércios que atribuía à cidade os rumos do progresso. Disse, sem contar as dez intermináveis portas do prédio que mais servia de escora para quem dispusesse de tempo do que de qualquer outra coisa, que histórias como as que rondam os rincões das Lavras só fazem sentido se, entre os ouvintes, se conhecer um pouco das memórias perdidas nesse pedaço de chão povoado por homens de moral ilibada que apenas temem a própria vontade.
 
Em qualquer recanto enrugado do sertão, há quem já tenha ouvido das bocas mais velhas e amargas o sabatinado ditado “herdeira de Mira Bêra” cuja força pungente das palavras não ousa medir o desprezo por mulheres que já viveram na capital do gado. O motivo de pouco se saber (e ouvir) a respeito da figura fulcral do dizer popular, que se tornou assunto proibido no reino da Cana-de-açúcar, foi o preço pelo apagamento pago pelo espírito de um vulto carmim.
 
Até para alguém que já presenciou narrativas extraordinárias entre pepitas de ouro e diamante, relatar a passagem dramática de uma lendária mulher que não temia nem mesmo sequer o coronel-intendente de Jussiape, afamado pelos caprichos do poder, é tarefa que não se cumpre sem muito esforço e coragem. O pouco que se tem notícia da mulher que se viu à luz da imagem de Maria Madalena é uma narrativa perdida em um poço estreito. Tornou-se sabido, não ao certo, que essa dama passou anos a fio desafiando a autoridade moral do coronel Antônio Rodrigues de Alcântara, homem de estirpe íntegra que colecionava glórias entre os bons, ainda nos primeiros anos da década de 1920.
 
Com certa pretensão e nenhuma vaidade, Maria de Mira Bêra fundou um exíguo império de cortesãs da noite e gozou de pequenos privilégios nos últimos dias em sociedade, até ser expulsa da povoação por ter sustentado os sortilégios de ser uma mulher dona do próprio nariz. Em se tratando da imensidão destas terras, onde o sol queima mais a fronte de uns que a de outros, imagina-se que ser quem era não foi coisa miúda a se contar nos dedos, como se muito se imaginou à época. Na verdade, pensou Castilho ao andar em silêncio pela praça esvaziada pela ocasião do dia, ser uma mulher livre, como Mira Bêra, nunca foi, lá, muito fácil em qualquer tempo deste mundo, imaginava. Consciente de um modo estranho para alguém do seu tempo, o tropeiro engolia histórias, e soluçava questionamentos. Acreditava que, para ela, ter seguido o seu destino significou mais do que exercer uma simples vocação que lhe fora arranjada, mas esta se impunha como única chance de vencer os infortúnios dos dias que se seguiam. Contava-se entre aqueles que a conheceram que, depois de muitas idas e vindas pelas vielas da vida, Mira Bêra assumira sua emancipação e sustentava, como ritual de um antigo feitiço, o pensamento de que aquele era um dom guardado dentro do seu peito. Uma espécie de vingança moral contra a sociedade.
 
Ao lidar com maestria, nos melhores anos da sua vida, ao cumprir o ofício, o mais antigo do mundo, o que exigia dela os contornos do seu corpo, Mira Bêra tivera certeza de que havia nascido para ser dona da própria carne. Embora em sua mente pairasse a certeza de carma, não tinha evidência de que o destino fosse uma espécie de castigo vindo de outras vidas. A sua existência havia se tornado um fardo tão pesado que encontrava uma metáfora perfeita quando dizia aos mais chegados que ostentava o peso de uma coroa de diamantes. Carregava consigo a convicção de que viera à cena deste mundo predestinada a ser alguém que sai à caça de vidas preciosas.
 
Maria de Mira Bêra, nome de batismo que a própria sina encarregara em lhe dar de presente nos preâmbulos da vida, então com 39 anos, recém-chegada a Jussiape, ganhou os olhares de homens que cobiçavam seu corpo: havia aos montes aqueles que, mesmo com um olhar de soslaio, fitava secretamente sua vitalidade no torso, desejava secretamente o derrière de suas pernas e se surpreendia com a força descomunal para uma simples mulher de estrada. Intimamente, muitos ficavam atormentados com a ideia de pecado, do medo de se deixarem seduzir por seus olhares, de tê-la sem qualquer peça de roupa, mesmo que por uma única noite. Sua pele encardida, manchada pelo sol, herança de pais mestiços, como julgavam outras mulheres da sociedade, não a deixava menos atraente. Pelo contrário, seus cabelos volumosos e encaracolados, distribuídos em madeixas de uma maciez angelical, presos a uma fita vermelha, que tocavam ombros desnudos e comedidos, conferiam-lhe um charme indescritível. O carmim, tonalidade presente nos vestidos que não tocavam o chão e valorizava decotes, se transfigurava em um ato de ousadia tolerada pelos homens ao permitir que uma mulher sem garantias desfilasse em pleno Jussiape dos anos de 1928.
 
No princípio, não havia ninguém a seu serviço, era apenas ela e a sua coragem de manter sua honra no Fuça, que se descobria como um emaranhado de casebres tortos, onde a prostituição progredia em uma rua sem reputação. Por aqueles lados, qualquer mulher com o mínimo de distinção e decência não ousava atravessar o passadiço. Com certa recorrência, Mira Bêra sonhava em herdar a rua do Chamego, lugarejo perdido para o progresso da modernidade. Mas era um tanto tardio, já que a ordem das suas ideias acabaram dando espaço para outros sonhos se apossarem de suas ambições. Um ano antes de chegar à cidade, ela sofreu com a injusta separação imposta pelo seu antigo sócio, que exercia vagamente o papel de marido. Mira Bêra havia sido extorquida, e tudo que um dia havia possuído um dia, perdera. Inclusive, a própria dignidade. Pouco antes, decidiu rumar por outros caminhos e se aventurar à procura de uma nova história. Em suas andanças pelo Circuito do Ouro, havia encontrado um atalho que dava passagem a um caminho que levava à Fazenda do Gado. Em um lugar distante da sua antiga vida, ansiava com uma credulidade ingênua o que estava por vir.
 
Uma das particularidades atribuídas a Mira Bêra era a de usurpadora. O epíteto, que foi estabelecido com unanimidade entre os que compartilhavam o centro da cidade, encontrava certa lógica no fato dela ter se deitado com boa parte dos homens casados de Jussiape e não esconder o feito. Ao interferir no matrimônio, ato de sacramento religioso da Igreja, ela se tornava responsável pela degradação dos bons costumes naquele lugar. Vista como a protagonista do erotismo de espetáculo, que atraía a atenção de uma plateia excêntrica, Mira Bêra recebera a reputação de vulto pitoresco, criado aos olhos e imaginação das senhoras de Jussiape. E, para a maioria delas, como vontade e determinação, a andarilha já devia ter sido entregue ao jugo popular, como forma de evitar demais façanhas da cúmplice do Diabo.
 
Um quadro de mais ou menos meio metro, como se ouvia dizer na época, chamava a atenção numa das paredes sujas pela umidade do principal quarto do Palácio Grande do Fuça. Nele, um corpo nu, ilustrado a óleo, trazia uma técnica de extraordinária versatilidade oferecida por um artista desconhecido, conferindo à tela resultados magníficos para quem o avistasse. A ilustração de Mira Bêra sem nenhuma peça cobrindo o seu corpo, ganhava fama e status de sagrado entre os homens, perdidos aos olhos da civilização. A arte logo foi considerada uma blasfêmia e era envolta de mistérios, o que conotava um poder ainda maior à visão daquelas curvas. Àquela altura, ninguém sabia dizer ao certo quando Mira Bêra fora retratada; ou se acabara de sair da infância e desfrutava dos primeiros anos da juventude, ou se o quadro houvera sido pintado ontem.
 
Ao trocar poucas palavras com dois ou três comerciantes, alí parados em frente às portas do Mercado Municipal, que recontavam a história do lugar, Castilho ousou com polidez completar as lacunas de uma narrativa desfigurada. 
 
_ Dizer que Mira Bêra ganhava a vida fácil não é lá muito justo, disse em tom amistoso. 
 
Os dias dela poderiam ter elencado os mais variados adjetivos, menos o de simples. Ela andava exposta aos olhares sem compaixão e sempre convivia com ameaças de violência vindas de senhoras de nomes de prestígio. Corria riscos de diversas naturezas por ter que defender as suas protegidas além de ter que se ver obrigada a satisfazer desejos diversos de naturezas inconfessáveis de figuras respeitadas de Jussiape. Com a sorte de uma pândega notívaga, Mira Bêra teria todas as chances de ter em seu corpo doenças do mundo. Mas nunca fora acometida por esse mal. Também não teve o infortúnio de engravidar e ter que carregar uma criança em seu ventre, o que tornaria a sua vida ainda mais dramatizada: jamais desejou transmitir a outro o legado de sua miséria. Muito embora, o que mais provocasse incômodo em uma sociedade de base conservadora, com pilares patriarcais, era o medo de perder, ainda que por algumas noites, seus maridos para mulheres como ela.
 
Mira Bêra fez do próprio corpo um negócio lucrativo. Ela era uma mina das Lavras, mercadoria cobiçada pelos homens que frequentavam o Fuça. A mulher de vermelho, como era chamada por aqueles que descobriam um corpo vivo por trás da fama de uma aparição, mostrou que aquela forma de vida era apenas possível no mundo em que elas criaram. Ganhar consciência desse doce deletério deixava muitas esposas possessas; muitas delas recorriam à autoridade da Igreja como última alternativa. Algumas chegaram a escrever uma carta ao bispo. Na feira do primeiro dia do ano, Mira Bêra havia dito que o pudor e a hipocrisia eram impedimentos para a plena realização de ser mulher. Não demorou muito para a força de suas palavras reverberarem pela região.
 
Em um daqueles anos incertos da década de 1930, brotavam em Jussiape diversas mulheres à procura de Mira Bêra. Todas elas buscavam fazer parte do seu império, impulsionadas pela avidez de servir o Palácio Grande do Fuça. Ao integrar à ordem de mulheres que comandavam a famosa casa de prostituição em Jussiape, aquelas jovens mulheres traziam sempre consigo a consciência da sentença de serem condenadas à marginalidade, como todas daquela época, além de serem predestinadas ao silêncio do esquecimento. 
 
Pouco se sabe sobre o destino de Mira Bêra, dizia o tropeiro, assim como afirmavam também, como um lamento, todas as outras mulheres daquele metiê. Nunca mais houve alguém que tivesse a coragem em proferir qualquer palavra sobre o seu paradeiro nem mesmo sugerir onde ela teria encontrado o fim de seus dias. O que se tem em memória, mas passava despercebido, por precaução ou descuido, é o fato de a Dama de Vermelho ter se apaixonado por um jovem da cidade, perdendo a vontade de se deitar com outros homens e colocando em risco tudo o que havia conquistado nesse tempo.
 
_ O maior pecado de Mira Bêra foi ter se entregado ao amor sem ter tido chance de luta, disse Castilho, sem muita disposição para debater com os mesmos comerciantes.
 
Em um desatino, numa manhã qualquer do mês de maio, Mira Bêra ignorou todos os avisos vindos do coronel Antônio Rodrigues e saiu à rua desvairada, com os seios à mostra e um vestido em frangalhos, após uma violenta sova que havia levado do intendente. Com as forças que lhe restaram, seguiu rumo à praça da Intendência, gritando, ainda delirante, para desespero e ira do homem que assistia à cena de longe, alisando seu bigode grisalho. A mulher, que ainda trazia em seu corpo uma cor rubra, mistura de suor e sangue, denunciava aos gritos um embate impetuoso. Afirmava com veemência ter cometido o pior pecado que uma prostitua do seu tempo poderia ter o sacrilégio de ousar: experimentar o sabor da paixão e renunciar a si mesmo. Mira Bêra se apaixonou por um jovem que acabara de perder para os anos a mocidade. No entanto, era um amor puro e febril, sem a sorte de durar. 
 
_ Pois bem, sou puta, e gosto de ser quem sou. Levarei comigo esse fardo pelo resto dos meus dias. Sou puta, pois sou uma mulher livre. Frequento a cama que me convir, disse.
 
Depois de levar uma bordoada do coronel Rodrigues, que fez da calçada da Intendência uma zona de confronto entre prostitutas e militares em pleno domingo de maio, Mira Bêra sucumbiu à privação da própria existência. Depois daquele dia, ela levava consigo o desprestígio de ser quem era. Saiu da cidade escorraçada pelo homem mais poderoso da cidade e tivera que ouvir, para a própria sorte, que o coronel não desejaria vê-la nunca mais em vida. 
 
A cólera do coronel Antônio Rodrigues era revestida de argumentos em defesa da família e da manutenção dos bons costumes em Jussiape. Para o miolo nobre da sociedade, a partida de Mira Bêra foi um alívio e purificação dos ares da cidade. Mas, internamente, entre os seus pensamentos conflituosos e confusos, Antônio Rodrigues não aceitava o fato de a rainha do Palácio Grande do Fuça tê-lo trocado por um belo meninote atraente da cidade. Toda vez que tencionava pensar no ocorrido, ardia o peito, como uma chama que mantinha acesa dentro de si. Para Mira Bêra, uma escolha traiçoeira, sem dúvida; conferiu à criadora da mais famosa e esquecida casa de prostituição de Jussiape má sorte. 
 
_ Mas o direito de ser que fora pertenceu a ela por excelência, e isso ninguém conseguiu tirar dela, trazia Castilho em voz alta para espanto dos poucos que o ouviam.
 
Ao deixar a cidade com o coração aquiescido pelo dever cumprido, Castilho anunciava a si mesmo divagações em um pensamento diletante. Acreditava que, ao se atrever a buscar uma liberdade que não existia, lutou contra qualquer força que vinha de encontro ao ato de escolher o próprio destino. Mas Mira Bêra deixou o único atavismo permitido, um ditado que insiste em sobreviver nas palavras de quem resgata, por vezes, a memória desse vulto carmim - galhofeiro e baderneiro: Quá, minha fia, princesa de bordel é puta!